segunda-feira, 30 de agosto de 2021

“Feridas narcísicas da Humanidade”: Qual será a próxima?

 

“Feridas narcísicas da Humanidade”: Qual será a próxima?


Uma das premissas mais famosas de Sigmund Freud, sem dúvida, é aquela que se refere aos três momentos chaves de ruptura do pensamento da humanidade. Cada um desses momentos foi interpretado por Freud como ferimentos, traumas, nos quais o homem se viu diante do rompimento de uma visão de mundo, tradicionalmente consolidada. Em seu lugar, um novo campo de saber foi adquirido e um novo paradigma foi estabelecido. Esse movimento de profunda transformação das estruturas mentais coincide com os estudos de três importantes nomes da história da ciência: Nicolau Copérnico, Charles Darwin e o próprio Sigmund Freud.

O primeiro nome, associado a esse movimento de transformação, foi o de Nicolau Copérnico (1473 – 1543). O astrônomo e matemático polonês foi quem desenvolveu, a partir de observações  sistemáticas, a teoria Heliocêntrica do Sistema Solar. Seus experimentos científicos, que demonstravam a centralidade do Sol, não só derrubavam o paradigma Geocêntrico, (no qual a Terra era o centro de tudo) até então vigente, como também contradizia o dogma da Igreja Católica, que pregava, há séculos, que o homem – enquanto criação divina – era o umbigo do Universo, uma vez que foi criado à imagem e semelhança de Deus. Copérnico foi, a partir de então, associado a uma traumática, porém necessária, ruptura com toda uma tradição de saberes, e, ao mesmo tempo, revolucionou, profundamente, uma imensa variedade de estudos posteriores, em especial aos da astronomia.

O segundo grande rompimento, ou a segunda “ferida narcísica” de que fala Freud, atribui-se às descobertas promovidas por Charles Darwin (1809 – 1882). O Geólogo e biólogo britânico foi o responsável por estabelecer uma verdadeira revolução no ramo das ciências naturais. Seu livro “A origem das Espécies” (1859), incorporou, por um lado, a ideia de evolução, entre os organismos vivos e, “retirou”, por outro, o homem do seu lugar sagrado, para catalogá-lo, definitivamente, dentro de um processo evolucionista mais amplo. Neste sentido, o humano deveria seguir uma trajetória muito parecida com a de outros mamíferos, compartilhando um “elo perdido” comum, que daria origem a todos os outros de sua espécie. O trauma causado pela obra de Darwin, no pensamento egocentrista de sua época, instituiu uma divisão fundamental entre os evolucionistas (que acreditavam nas ideias do biólogo britânico) e os criacionistas (que acreditavam na criação do homem por ação direta de Deus), querela esta que reaparece em pequenos surtos ainda hoje.

E o terceiro trauma, que também representou uma ruptura profunda no pensamento da humanidade, foi fruto da ciência da psicanálise, fundada pelo próprio Freud (1856 – 1939). O médico neurologista e psiquiatra austríaco foi o responsável pelo desenvolvimento de um campo de estudos centrado no inconsciente. Diferentemente do consciente, o inconsciente, uma das principais descobertas da psicanálise, não se revelava abertamente aos olhos dos investigadores, quando muito, aparecia em forma de conflitos internos e neuroses diversas. Cabia, por isso, ao psicanalista a função de interpretar os significados ocultos e distorcidos que os pacientes traziam ao consultório. Deste modo, os estudos de psicanálise revelaram para o mundo que o Eu, consciente, nem sempre estava no comando das ações, e, muitas das vezes, era o inconsciente que conduzia a vida dos homens.

Ainda que esta teoria freudiana pudesse soar, na visão de seus críticos, hiperbólica e, até mesmo prepotente, Freud teve o mérito de retirar do homem, ou melhor, do constructo teórico da imagem desse homem, a centralidade divina, há tanto tempo reivindicada pelas mais diferentes religiões. Este homem, que já não era o centro do universo, e que ocupava apenas um breve instante na longuíssima evolução da vida, foi ainda desnudado e apresentado ao seu Eu interior e, consequentemente, aos seus demônios mais ocultos. A psicanálise trouxe à tona o inconsciente e revelou para o século XX um homem imaturo, inseguro, egoísta e neurótico, o oposto daquilo que o século XIX havia planeado, com os seus surpreendentes avanços técnicos e materiais.

Esta nova visão de mundo logo se faria valer com o advento das Grandes Guerras Mundiais, as profundas crises econômicas, sociais e éticas. O mundo, à medida que evoluía tecnicamente, era dirigido por gerações e gerações de homens cada vez mais traumatizados e infantilizados, do ponto de vista da psicanálise. Ganhava-se arranha-céus, máquinas voadoras, máquinas destruidoras da vida, ao mesmo tempo, perdia-se a essência do homem, o altruísmo e a “consciência planetária”.[1]  O século XX, nos seus anos derradeiros, presenciou uma revolução midiática provocada por outra revolução, a da internet. Jovens e idosos começaram a se comunicar via mensagens texto/virtuais, via figurinhas “emotivas”. Estava lançado uma nova era da comunicação, sem limites, sem filtros éticos ou morais, o homem freudiano, em tese, mais do que nunca, poderia expressar-se, por meio da palavra escrita, tudo aquilo desejasse.

O século XXI parecia ter nascido pronto do ponto de vista científico, técnico e material. Uma sensação de dever cumprido pela humanidade, sobretudo, propagandeada pelo estilo de vida dos países ricos, havia tomado às redes sociais. O “estar bem consigo mesmo”, o “não importar com o que os outros dizem”, o registrar viagens paradisíacas, comidas e bebidas e, sobretudo, se “filtrar”, para melhor, com os recursos dos novos aplicativos, transparecendo uma beleza que se quer universal, são os mantras dos nossos tempos. Uma sociedade do espetáculo, profundamente narcisista, que não enxerga a diferença, que não aceita o outro, se instalou. Ao lado desse novo império narcísico, o homem agoniza internamente, nunca se procurou tantos remédios para dormir, remédios para acordar e remédios para ser feliz. Igualmente, o meio ambiente, o Home de cada ser vivo, se desfaz em ritmo acelerado.[2] As profecias de velhos sábios indígenas, dos quatro cantos do mundo, que alertam o “branco” pela tragédia inevitável, têm pouco ou nenhum efeito aos ouvidos de governantes egocêntricos.

Neste ponto a que chegamos, talvez, a única saída fosse o aparecimento de uma quarta “ferida narcísica”, na qual o homem perderia, outra vez, o seu status de centralidade. Como decorrência, o seu modo de vida, pautado por uma consciência consumista e uma indiferença latente com o outro, deveria ser revisado em absoluto. Contudo, que pensador/cientista poderia realizar tal feito hoje em dia? Que Copérnico, Darwin ou Freud poderia provocar um rompimento verdadeiro? Uma vez que, o homem atual se ilude, acredita ter se “recolocado” no centro do universo, ter se “restituído”, a lugar de principal espécie, e, “ocultado”, mais uma vez, o seu inconsciente. Neste último caso, a ilusão é ainda mais perigosa, pois não só revela a sua doença mental crônica, como também, abre caminhos para que seus demônios mais primitivos escapem sem ser percebidos.  

Por fim, resta registrar que, embora estejamos em meio a uma pandemia, que abalou as estruturas econômicas e sociais do planeta, e escancarou nossas fragilidades, esta, apesar de tantas mortes, infelizmente não foi capaz de romper com o nosso atual mito narcísico. O homem, ao contrário, tem se mostrado cada vez mais antiético, egoísta e consumista, e tudo indica que estes comportamentos só vão se agravar.  Não se trata de apenas esperar uma “quarta ferida”, ou algo externo, vindo do céu (um cometa) ou das profundezas das florestas (um vírus), que possa mudar tal situação de calamidade. A solução talvez esteja ainda na “terceira ferida”, no interior do Eu, na busca daquilo que escondemos com todas as nossas energias. Revisitar a obra de Freud e de todos aqueles que se dedicaram nesta busca incessante, pode ser o início, uma vez que a psicanálise, diferentemente, das outras “feridas” ainda não completou sua missão, e está em franca tentativa de rompimento. Assim, a descoberta da psicanálise somente indicou o caminho a seguir, resta-nos agora, passados mais de um século, continuarmos a grande empreitada do estudo do inconsciente.

      



[1] Sobre consciência planetária ver: MORIN, Edgar: Os sete saberes necessários à educação do futuro. (Trad.) Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Ed. 10. São Paulo, SP: Cortez; Brasília, DF: unesco, 2005.

[2] Ver: Home. Disponível em: youtube.com/watch?v=Wa546EesVPE&t=100s. Acessado em 01 de Janeiro de 2021.

2 comentários:

  1. Não há competição para um professor tão dedicado e inteligente. Suas obras são incríveis.Quisera ser um grão de areia perto dele: Luiz Mario Ferreira Costa. Um grande abraco,Marinho.

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    1. Muito obrigado, Tia Titita, minha querida professora! Estou aguardando um textinho seu aqui... Será uma honra imensa!!! Bjinhos!!!

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