“Feridas narcísicas da Humanidade”: Qual será a próxima?
Uma
das premissas mais famosas de Sigmund Freud, sem dúvida, é aquela que se refere
aos três momentos chaves de ruptura do pensamento da humanidade. Cada um desses
momentos foi interpretado por Freud como ferimentos, traumas, nos quais o homem
se viu diante do rompimento de uma visão de mundo, tradicionalmente
consolidada. Em seu lugar, um novo campo de saber foi adquirido e um novo
paradigma foi estabelecido. Esse movimento de profunda transformação das
estruturas mentais coincide com os estudos de três importantes nomes da
história da ciência: Nicolau Copérnico, Charles Darwin e o próprio Sigmund
Freud.
O
primeiro nome, associado a esse movimento de transformação, foi o de Nicolau
Copérnico (1473 – 1543). O astrônomo e matemático polonês foi quem desenvolveu,
a partir de observações sistemáticas, a teoria Heliocêntrica do Sistema Solar.
Seus experimentos científicos, que demonstravam a centralidade do Sol, não só
derrubavam o paradigma Geocêntrico, (no qual a Terra era o centro de tudo) até
então vigente, como também contradizia o dogma da Igreja Católica, que pregava,
há séculos, que o homem – enquanto criação divina – era o umbigo do Universo,
uma vez que foi criado à imagem e semelhança de Deus. Copérnico foi, a partir
de então, associado a uma traumática, porém necessária, ruptura com toda uma
tradição de saberes, e, ao mesmo tempo, revolucionou, profundamente, uma imensa
variedade de estudos posteriores, em especial aos da astronomia.
O
segundo grande rompimento, ou a segunda “ferida narcísica” de que fala Freud,
atribui-se às descobertas promovidas por Charles Darwin (1809 – 1882). O
Geólogo e biólogo britânico foi o responsável por estabelecer uma verdadeira
revolução no ramo das ciências naturais. Seu livro “A origem das Espécies”
(1859), incorporou, por um lado, a ideia de evolução, entre os organismos vivos
e, “retirou”, por outro, o homem do seu lugar sagrado, para catalogá-lo,
definitivamente, dentro de um processo evolucionista mais amplo. Neste sentido,
o humano deveria seguir uma trajetória muito parecida com a de outros mamíferos,
compartilhando um “elo perdido” comum, que daria origem a todos os outros de
sua espécie. O trauma causado pela obra de Darwin, no pensamento egocentrista de
sua época, instituiu uma divisão fundamental entre os evolucionistas (que
acreditavam nas ideias do biólogo britânico) e os criacionistas (que
acreditavam na criação do homem por ação direta de Deus), querela esta que
reaparece em pequenos surtos ainda hoje.
E
o terceiro trauma, que também representou uma ruptura profunda no pensamento da
humanidade, foi fruto da ciência da psicanálise, fundada pelo próprio Freud
(1856 – 1939). O médico neurologista e psiquiatra austríaco foi o responsável pelo
desenvolvimento de um campo de estudos centrado no inconsciente. Diferentemente
do consciente, o inconsciente, uma das principais descobertas da psicanálise,
não se revelava abertamente aos olhos dos investigadores, quando muito,
aparecia em forma de conflitos internos e neuroses diversas. Cabia, por isso,
ao psicanalista a função de interpretar os significados ocultos e distorcidos
que os pacientes traziam ao consultório. Deste modo, os estudos de psicanálise
revelaram para o mundo que o Eu, consciente, nem sempre estava no comando das
ações, e, muitas das vezes, era o inconsciente que conduzia a vida dos homens.
Ainda
que esta teoria freudiana pudesse soar, na visão de seus críticos, hiperbólica
e, até mesmo prepotente, Freud teve o mérito de retirar do homem, ou melhor, do
constructo teórico da imagem desse homem, a centralidade divina, há tanto tempo
reivindicada pelas mais diferentes religiões. Este homem, que já não era o
centro do universo, e que ocupava apenas um breve instante na longuíssima
evolução da vida, foi ainda desnudado e apresentado ao seu Eu interior e,
consequentemente, aos seus demônios mais ocultos. A psicanálise trouxe à tona o
inconsciente e revelou para o século XX um homem imaturo, inseguro, egoísta e
neurótico, o oposto daquilo que o século XIX havia planeado, com os seus
surpreendentes avanços técnicos e materiais.
Esta
nova visão de mundo logo se faria valer com o advento das Grandes Guerras
Mundiais, as profundas crises econômicas, sociais e éticas. O mundo, à medida
que evoluía tecnicamente, era dirigido por gerações e gerações de homens cada
vez mais traumatizados e infantilizados, do ponto de vista da psicanálise.
Ganhava-se arranha-céus, máquinas voadoras, máquinas destruidoras da vida, ao
mesmo tempo, perdia-se a essência do homem, o altruísmo e a “consciência
planetária”.[1]
O século XX, nos seus anos derradeiros,
presenciou uma revolução midiática provocada por outra revolução, a da
internet. Jovens e idosos começaram a se comunicar via mensagens texto/virtuais,
via figurinhas “emotivas”. Estava lançado uma nova era da comunicação, sem
limites, sem filtros éticos ou morais, o homem freudiano, em tese, mais do que
nunca, poderia expressar-se, por meio da palavra escrita, tudo aquilo desejasse.
O
século XXI parecia ter nascido pronto do ponto de vista científico, técnico e
material. Uma sensação de dever cumprido pela humanidade, sobretudo, propagandeada
pelo estilo de vida dos países ricos, havia tomado às redes sociais. O “estar
bem consigo mesmo”, o “não importar com o que os outros dizem”, o registrar
viagens paradisíacas, comidas e bebidas e, sobretudo, se “filtrar”, para
melhor, com os recursos dos novos aplicativos, transparecendo uma beleza que se
quer universal, são os mantras dos nossos tempos. Uma sociedade do espetáculo,
profundamente narcisista, que não enxerga a diferença, que não aceita o outro,
se instalou. Ao lado desse novo império narcísico, o homem agoniza
internamente, nunca se procurou tantos remédios para dormir, remédios para
acordar e remédios para ser feliz. Igualmente, o meio ambiente, o Home de cada ser vivo, se desfaz em
ritmo acelerado.[2]
As profecias de velhos sábios indígenas, dos quatro cantos do mundo, que
alertam o “branco” pela tragédia inevitável, têm pouco ou nenhum efeito aos
ouvidos de governantes egocêntricos.
Neste
ponto a que chegamos, talvez, a única saída fosse o aparecimento de uma quarta
“ferida narcísica”, na qual o homem perderia, outra vez, o seu status de
centralidade. Como decorrência, o seu modo de vida, pautado por uma consciência
consumista e uma indiferença latente com o outro, deveria ser revisado em
absoluto. Contudo, que pensador/cientista poderia realizar tal feito hoje em
dia? Que Copérnico, Darwin ou Freud poderia provocar um rompimento verdadeiro? Uma
vez que, o homem atual se ilude, acredita ter se “recolocado” no centro do
universo, ter se “restituído”, a lugar de principal espécie, e, “ocultado”,
mais uma vez, o seu inconsciente. Neste último caso, a ilusão é ainda mais
perigosa, pois não só revela a sua doença mental crônica, como também, abre
caminhos para que seus demônios mais primitivos escapem sem ser percebidos.
Por
fim, resta registrar que, embora estejamos em meio a uma pandemia, que abalou
as estruturas econômicas e sociais do planeta, e escancarou nossas fragilidades,
esta, apesar de tantas mortes, infelizmente não foi capaz de romper com o nosso
atual mito narcísico. O homem, ao contrário, tem se mostrado cada vez mais antiético,
egoísta e consumista, e tudo indica que estes comportamentos só vão se
agravar. Não se trata de apenas esperar
uma “quarta ferida”, ou algo externo, vindo do céu (um cometa) ou das
profundezas das florestas (um vírus), que possa mudar tal situação de
calamidade. A solução talvez esteja ainda na “terceira ferida”, no interior do
Eu, na busca daquilo que escondemos com todas as nossas energias. Revisitar a
obra de Freud e de todos aqueles que se dedicaram nesta busca incessante, pode
ser o início, uma vez que a psicanálise, diferentemente, das outras “feridas”
ainda não completou sua missão, e está em franca tentativa de rompimento.
Assim, a descoberta da psicanálise somente indicou o caminho a seguir, resta-nos
agora, passados mais de um século, continuarmos a grande empreitada do estudo
do inconsciente.
[1] Sobre consciência planetária
ver: MORIN, Edgar: Os sete saberes
necessários à educação do futuro. (Trad.) Catarina Eleonora F. da Silva e
Jeanne Sawaya. Ed. 10. São Paulo, SP: Cortez; Brasília, DF: unesco, 2005.
[2] Ver: Home. Disponível em:
youtube.com/watch?v=Wa546EesVPE&t=100s. Acessado em 01 de Janeiro de 2021.